Contos

 
Imagem de pesquisa ao Google - desconheço a autoria
 
A CASA DOS SETE ERROS
 
      - É mal assombrada – avisa Roni, marido de Aloma, ao vê-la entrar por uma porta entreaberta, num casarão de arquitetura eclética, construído no final do século XIX. Roni não sabe que este é o motivo que leva Aloma a entrar na casa sem que o convide. Ela está certa de que algo lhe seduz e, mesmo sem saber exatamente o que é, segue seu instinto, observando minuciosamente todos os detalhes do que compõem cada espaço daquele enigmático imóvel.
      Se do lado de fora Roni se desespera, dentro da casa, Aloma sente-se cada vez mais envolvida com aquele ambiente ora estranho, ora familiar. Ela se reconhece em tudo que presencia: nas paredes forradas por seda e papel trabalhado a ouro, nas lareiras de mármores, e até no antigo relógio de torre.
      Ao desviar seus olhos de um lustre, que mesmo com as luzes apagadas, cintila parte do salão, depara-se com um dos espelhos franceses, e seis rostos juntos ao seu. Por um instante vacila, mas é açulada pelos gestos de boas vindas refletidos em cada olhar.
       Aloma vive momentos de silenciosas inquirições – Quem são estes rostos? Por que somente rostos? E a semelhança comigo? – sem reposta, muda-se para outro espaço onde não há espelho, pensando se desvencilhar do que considera obra da imaginação. Lembra-se dos sete erros que ficara de identificar e tenta voltar para a parte externa. Em vão: em seu entorno, sobre as marquesas de jacarandá, estão sete corpos, incluindo o seu, cobertos até o pescoço, por rendas francesas, de cor amarelecida.
       Dessa vez a aflição é maior. Não há espelho, mas Aloma se ver num corpo que não lhe pertence, mas que é seu. – E quem são os outros? Porque estou com eles? – continua indagando, com um misto de curiosidade e pavor. De repente, uma voz oriunda de um dos quartos a convida com certa autoridade. Aloma reluta, não está mais disposta a continuar ali.
       - Daqui eu só saio para onde está o meu marido! Se pelo menos eu compreendesse o que está acontecendo – completa, um tanto dividida.
       A voz insiste e ela cede. Entra no quarto e observa as velas acenderam paulatinamente, como se fosse um passo de valsa, da última valsa que dançara naquele lugar – tem esta sensação. Não há ninguém no espaço, a voz se cala, mas ela escuta as mensagens impregnadas em tudo que ver: numa camisola de seda sobre uma velha cama de jacarandá, num frasco de perfume francês, ainda com a fragrância, tudo ali parece seu! Senta-se de frente para um espelho e mais uma vez avista os rostos, que cada vez mais se parecem com ela. Mantem-se calma e pergunta num tom acolhedor:
       - Quem são vocês? Porque eu estou aí?
       Todos se olham simultaneamente e respondem:
       - Somos você!
       Eram sete rostos e, como Aloma poderia entender? Pensa em sair dali, buscar socorro junto ao seu marido, mas não é ele o herói. O herói não será um guerreiro, mas um pacificador, que elucidará os sete erros, e a libertará para viver somente o presente.
       A voz surge novamente e aos poucos vai ganhando corpo. Aloma reconhece seu primeiro pai, que é o responsável pelos mesmos erros cometidos, de formas diferentes, em suas sete vidas. Ele segura sua mão e lhe conduz ao lado externo, onde aponta, na faixada do casarão, os símbolos das sete vezes que a filha errara, por sempre se utilizar de uma janela, para escapar da porta fechada.
       Feito isso, age sobre o inconsciente de Aloma e a liberta para a vida que lhe espera, junto a Roni, que lhe abraça aliviado.
 
Ivone Alves Sol 
 
 
 
 
 
UM TROCADO
        Aloma compreendera que aquele lugar não era mais de sua exclusividade.  Além do mais, tinha algo naquele garoto que lhe impressionava.  Era a terceira vez que ela o encontrava, sentado no paredão, enquanto seu olhar caminhava o universo – era o que ela pensava.
        Aloma se acomodara com a intimidade de quem se apossava da imensidão que aquele cantinho representava. Fora o que sobrara de um muro atingido por uma onda violenta, mas que tinha a vista mais bela do litoral.   Abriu a mochila, de onde tirara o notebook, como era praxe, e começou a escrever. Abonara os pensamentos, que adejava na vastidão a sua frente – aquele era o seu mundo.
       No ensejo, não cabia a insegurança proveniente das atrocidades dos dias atuais. Aloma sabia que não era prudente usar o notebook, num lugar onde transitava todos os tipos de pessoas, mas, que ao seu redor, só tinha aquele garoto, tão próximo quanto distante. Tantas coisas passavam em sua cabeça, tantas imagens açulavam sua imaginação, mas naquele dia existia algo que lhe incomodava e que lhe inspirava: era sobre aquele garoto que ela queria escrever. E começaram as interrogações internas:
        - Devo perguntar seu nome e me apresentar? Perguntá-lo sobre o que pensa?
        - Não! Não vou fazer isso, já sei que ele está pensando... Sei?!
        - Sim, é isso:
        - O que será que essa moça escreve? Ah, eu queria um bicho desses também - Eu iria escrever sobre esse marzão e essa moça...
        _ Ah, não! Ele não pensaria assim! Ele é muito novo, deve ter uns 12 anos... Ele deve estar pensando em pegar uma onda, será?!
        - Oba! Que onda gigante! Se eu tivesse uma prancha...!
        - Porque será que eu ainda não me convenci, disso? - Disse Aloma.
        - Acho que ninguém pode saber o que pensa o outro – continua.
       Diante desse conflito, Aloma resolve dirigir-se ao garoto e fazer o que considera certo:
        - Olá! Eu sou Aloma, agora sua vizinha de paredão, e você, quem é?
                     O garoto olhou agnóstico para Aloma e disse:
        - Eu sou Carlinhos, me dá um trocado, moça!?
 
Ivone Alves Sol
 
 
 
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ADVENTÍCIOS EM SEU HABITAT

       
         Era uma descomunal chuva de verão e o céu hibernava dentro de um vapor quente, ora de ar, ora de gente, agonizando a vida latente nas gotas d’água, sobre o chão sedento do âmago humano. Lágrimas caiam inteiras no meio da tarde, vindas de toda parte dos corpos, adventícios em seu próprio habitat.
         Abriam-se leitos na aridez dos cérebros, que mais pareciam máquinas, programadas para não receber os comandos da inteligência, que submergia no vasto campo da intelectualidade. Milhares de quilômetros eram abarcados em segundos por canais improlíficos espalhado no estreito mundo da ganância imódica. 
         Paulatinamente os corpos iam perdendo a forma natural, os olhos enxergavam, mas não viam, e os membros eram movidos pela mente que desconectara dos sentidos. Um deserto começava a se instalar na floresta dos saberes e o único oásis estava no pedacinho de consciência que restara num canto esquecido.
         A chuva continuava e não se sabia qual era a estação. Era tudo sombrio e frio naquela tarde de verão. Os sentimentos prodigalizaram na egocêntrica azinhaga da cobiça e o vento levara a memória do que um dia fora a vida.
         Eram fétidos os resquícios das árvores na falta de ar e, no que restara do solo, não brotava nem a semente da esperança, depois de ser a última morrer.
         Começara, então, a demolir o império da arrogância, os sentimentos pugnavam entre si e os sentidos se asfixiavam nos esgotos dos olhos conspurcados. Não fazia sentido apontar a arrogância como ré absoluta, nem deixar o amor incólume de culpa. Não houvera quem passasse pela chuva sem se molhar.
         Em nome do amor próprio, os corpos recorriam à coberta da indiferença e se abrigavam na frieza. Eram vazios, mas vomitavam lamas, dejetos da consciência submergida na enchente provocada pela chuva que a humanidade seca provocara.
  
Ivone Alves Sol